Flavio Cruz

Eu, um estranho passageiro

Com minha valise de mão, corri na plataforma e ainda consegui pegar o trem. Por pouco. Suado, procurei por um lugar na janela. Foi fácil, o vagão não estava muito cheio. Seriam 47 minutos de viagem, nem daria tempo para recomeçar a leitura de meu livro. Relaxei, encostei a cabeça na poltrona e me pus a admirar a paisagem. Uma mata baixa com uma ou outra árvore um pouco mais alta se destacando. Enquanto o fundo daquele quadro permanecia estável, as pedras e a vegetação ao lado dos trilhos parecia viajar na velocidade da luz. Lembrei-me do meu amigo, professor de Física, comentando; “relativo, relativo...” Suas respostas sempre começavam assim. E com o tempo comecei a achar que ele tinha razão. Tinha visto cada coisa na vida que... Bem, melhor nem pensar muito.
Quando estava começando a relaxar, percebi que a paisagem começou a mudar. Começaram a aparecer as primeiras casas, estilo rural, dispersas naquele enorme campo que se descortinava à minha frente. Olhei para o relógio e notei que faltavam apenas sete minutos para que a estação da cidade de Retiro dos Anjos chegasse. O tempo tinha voado, mesmo. Comecei a me preparar para descer. Olhei de novo as horas e então faltava menos de um minuto. A velocidade do trem, entretanto não estava diminuindo. Estava óbvio que ele não iria parar. Perguntei para uma pessoa do banco ao lado o que estava acontecendo. Olhou para mim como se não estivesse entendendo e por isso falei mais claramente:
-O trem não vai parar?
-Nunca parou nesta cidade, meu senhor. Nunca.
Em desespero, tentei entender o que estava acontecendo. Lembrei-me quase imediatamente que aquilo não poderia ser verdade. Só nas últimas semanas eu tinha viajado três ou quatro vezes e em todas elas eu tinha parado naquele lugar. Entretanto, atônito, vi meu vagão passar pela plataforma vazia sem parar. Sentei-me novamente e tentei me acalmar. Não sei por que me veio à mente a imagem de minha mulher me dizendo: “Homem, onde você está com a cabeça?” Naquele caso, porém, ela não teria razão.
Passados uns 15 minutos, refeito, dirigi-me àquele senhor, novamente:
-Qual a próxima estação?
-Pousada dos Pardais.
E deu um sorriso simpático. Só aí me dei conta de que era uma outra pessoa. Nem percebi quando aquele outro homem tinha saído. Segundos depois acrescentou que estaríamos lá em cerca de uma hora e sete minutos. Pensei no absurdo. Teria que viajar mais uma hora, esperar outro tanto e se tivesse sorte, arrumar um outro trem para voltar. Eram quatro, cinco ou mais horas, pelo menos. Só daí estaria de volta a Retiro dos Anjos. Aquele dia estava perdido. Tentei me acomodar na poltrona e dormir. Claro que não consegui. Aquela agitação mental, aquele torpor, quase medo, deixavam-me mais do que acordado. Não sabia o que pensar. De repente me veio um nome à mente: Santa Clara. Um segundo depois, entendi. A próxima estação era Santa Clara e não Pousada dos Pardais. O homem estava enganado. Comentei isso com ele, que, condescendente, me falou:
-O senhor está enganado. Santa Clara é muito para trás. Eu sei onde o senhor embarcou e ela fica duas estações antes. Outra direção, meu amigo. Outra direção.
E voltou a ler seu jornal. Eu tinha certeza de que era eu quem estava certo. De qualquer forma, a essa altura faltavam apenas sete minutos para chegar a nova parada e eu me preparei para a desforra. Arrumava as palavras de ironia ou de condescendência que iria usar com o meu vizinho passageiro. Quando faltavam dois minutos para a nova estação, percebi, assustado, que o trem não diminuía a velocidade, de novo. Confirmando meus temores, ele passou direto. Por outro lado, tive uma pequena vitória. A estação que passou tinha sido Santa Clara. Estava em dúvida em minha mente se perguntava a meu vizinho por que não tinha havido parada ou se me vangloriava de que tinha acertado a estação. Enquanto, indeciso, me virava para lhe falar, percebi que não havia ninguém no banco. Olhei para o resto do vagão e não vi meu companheiro de viagem em nenhum lugar. Apenas quatro passageiros. Que besteira, naquele momento me vieram a mente as palavras “quatro cavaleiros do Apocalipse”. Com um problemão daqueles em minha vida e eu pensando em passagens bíblicas. Eram quatro mesmo? Estava duvidando até disso agora.
Sentei-me e fiquei me lembrando do conselho de um grande amigo meu no passado. Na hora da crise, a coisa mais importante é se acalmar.  Cabeça quente só faz besteira. Foi o que tentei fazer com relativo sucesso. Relatividade é tudo. Quem mesmo que falou isso? Acho que “tudo é relativo” é a frase certa. Foi bom. Depois de alguns minutos, uma coisa óbvia me ocorreu. O chefe do trem. É por isso que ele se chama chefe. Ele sabe das coisas. Decidi procurar por ele. Um pequeno temor se apossou de mim. E se não houvesse um chefe? Com tanto fato estranho acontecendo, a ideia não era tão absurda assim. Fiquei formulando as perguntas que lhe faria, sem parecer louco.  Se ele achasse que eu não estava bem da cabeça, ele poderia tomar atitudes. Si lá. Ele não tinha passado ainda. Deveria estar vindo da frente. Melhor esperar. Assim minhas perguntas iriam parecer casuais. Se achasse que eu estava parecendo estranho, teria tempo de dizer que estava brincando. Sabe, viagem longa, sem ter o que fazer?
Como se o destino estivesse me ouvindo, vi a porta lá da frente se abrir. E um senhor gordo, de quepe, como deveria ser um chefe de trem, apareceu, para meu alívio. Ele, porém, vinha devagar. Era como se estivesse verificando as passagens de imaginários passageiros. Quando estava bem perto, procurei a passagem no bolso. Graças a Deus, ela estava lá. Só me faltava mais uma dessas! Automaticamente olhei para ela e lá estava: Retiro dos Anjos. Entreguei-lhe a passagem, que ele picotou. Balbuciei, então:
-Como o senhor pode ver, eu perdi minha parada. Como faço agora?
Ele olhou para mim, sem entender, e perguntou:
-Como assim?
-Eu pensei que o trem parasse lá, mas...
Ele me interrompeu:
-Como assim? Retiro nem chegou ainda. São mais três horas de viagem. O senhor andou bebendo?
Eu, que deveria ficar ofendido com a pergunta, dei, no entanto, graças a Deus. Só quis confirmar:
-Mas o trem para lá?
- Meu senhor, a sua passagem não diz “Retiro dos Anjos”? Se a nossa companhia vende uma passagem com um destino é porque o trem para nesse destino.
Tentei argumentar, explicando os fatos pelos quais eu tinha passado, mas desisti. Certamente passaria por ridículo. Ele se despediu me desejando boa viagem. E continuou picotando os bilhetes. Dos passageiros de verdade e dos imaginários que eu não via. Tentei relaxar. Tentei achar lógica no que estava acontecendo. Foi aí que me lembrei novamente do meu amigo, aquele que falava “relativo, relativo”. Ele sempre dizia que a lógica não existia. Existia o mundo, existiam as coisas. Depois a gente tentava arrumar uma lógica para elas. Então, uma coisa só é estranha antes de você aplicar uma lógica para a mesma. A lógica se adapta. Por exemplo, se as plantas nascessem no ar, com as raízes para cima, a gente arrumaria uma lógica para isso, pois seria um fato. A lógica nós inventamos para se adaptar aos fatos. O fato não se adapta. O fato é o fato. Lembro-me perfeitamente da cara de satisfação com que ele dizia isso. Tentei, então, arrumar uma lógica para os fatos recentes. Não conseguia.
E o tempo foi passando e eu dividindo o tempo em compartimentos. Dividia os minutos que faltavam em blocos de dez. Os blocos de dez em cinco blocos de dois. Às vezes me distraía com outros pensamentos e alguns blocos escapavam. Era bom. Menos blocos para contar, para ver passar. Assim foi que, de repente, faltava só meia hora para Retiro dos Anjos. E essa meia hora demorou. Finalmente faltavam apenas dez minutos. E no fim de tudo, os dois minutos fatais, aqueles em que o trem tinha de diminuir a velocidade. Percebi então, que iria acontecer tudo igual. O trem iria passar direto. Na verdade, ele já tinha passado direto. Não havia lógica para isso. E daí podia ver meu amigo insistindo: “Você precisa arrumar uma lógica para os fatos. Eles, por si mesmos, não têm lógica.”
Estava bem claro o que eu tinha de fazer. Andar pelo trem inteiro, falar com todo mundo. Abrir o jogo. Falar com o maquinista, novamente com aquele doidinho do chefe do trem, com todos os passageiros. Daí, sim, eu iria arrumar uma lógica para aquilo. Eu sempre consegui explicações para as coisas na minha vida. Não seria dessa vez...
Levantei-me decidido e fui até a porta da frente, por onde o chefe do trem tinha saído. Acho que ele não era chefe coisa nenhuma. Um bilheteiro apenas. Existem bilheteiros? Não importa.
Abri com força a porta e o vento quase me derrubou. Não havia outro vagão, não havia máquina, nem maquinista. Os trilhos voavam por baixo do vagão e sumiam. Aquilo não era o fim do mundo. A máquina podia estar empurrando o vagão por trás. Não era comum num trem de passageiros, mas o que era comum naquele trem? Fui andando para a porta traseira. No caminho, percebi que os passageiros tinham sumido. Fazia sentido, aquele era o primeiro vagão, vinha um vento danado, isso incomodava, eles haviam se retirado. A lógica estava se montando novamente. Eu sabia que aconteceria. Tudo faria sentido. Agora estava explicado por que o maquinista não parava nas estações, Ele não as via, porque estava lá atrás. Era tão evidente. O que era mais evidente ainda, era que nós, os passageiros, tínhamos de avisá-lo que queríamos parar. Como ele iria saber? Para que parar, se não havia ninguém para descer? Naquele pequeno trecho, tudo que tinha acabado de acontecer, se explicava por si mesmo. Havia uma lógica interna, bonita, coerente, sensata, em tudo aquilo. Meu amigo tinha toda a razão do mundo. O fato é o fato. A lógica se ajeita depois. Sábio, o meu amigo. Devia ter conversado mais com ele quando tive chance.
Coloquei a mão no puxador e abri a porta de trás. Não havia nada. Só os trilhos, voando, vindo de baixo do vagão. E aquele barulho típico de trem. Parecia absurdo, mas eu tinha certeza de que havia uma lógica interna. Uma lógica a ser descoberta, criada. Era bonito aquilo, estava gostando. Arrumar uma explicação para o inexplicável. Até me senti culpado, eu parecia um deus dando sentido para tudo, para a criação. Notei naqueles segundos, antes de fechar novamente a porta de trás, que não havia rede elétrica. O trem, então, tinha de estar sendo movido a lenha ou a diesel. Tudo seria possível. Não era maravilhoso tudo ser possível?
Sentei-me novamente. Dessa vez, com muito mais tranquilidade. Tinha conseguido dar lógica a muitas coisas. Havia ainda muito a ser explicado. Muito. Alguns fatos, bem, alguns eu teria bastante dificuldade em explicá-los. Mas eu tinha todo o tempo do mundo.
Agora já faz muito tempo que estou neste trem, viajando. De vez em quando consigo dar sentido para algumas coisas. Por exemplo, nunca mais vi estações. Faz sentido, pois não preciso mais delas, Não vou descer. Não preciso, estou bem aqui. Não sinto fome nem sede. Não preciso ir ao banheiro nem cortar o cabelo. Não preciso explicar ou falar nada para ninguém, pois ninguém está aqui. Gosto do jeito que tudo está. E o mais bonito de tudo, sabe o que é? A paisagem nunca se repete. Algumas bem estranhas, sem explicação. Mas eu não me preocupo. Um dia tudo vai fazer sentido, tudo vai ser explicado. Não estou com pressa.
A única coisa que me incomoda é que não consigo achar o livro que trouxe para me distrair. Sabe, é uma longa viajem. Mas isso também deve ter uma lógica. Qualquer dia desses eu descubro. A gente sempre acaba entendendo o significado das coisas. Sempre.

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Published on e-Stories.org on 28.04.2015.

 
 

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